Em uma parte de sua autobiografia, Rita Lee em uma “profecia” falava de como seria a movimentação das pessoas após sua morte. Falou que “a imprensa já teria um obituário preparado” mas que seus fãs – os sinceros – “empunhariam seus discos e entoariam Ovelha Negra” finalizando dizendo que apesar de não ter sido um exemplo foi “gente boa”. Bem, me encontro no meio termo entre esses, aqui não tínhamos um obituário preparado, e como fã estou disposto a falar do amor que sinto por ela. Rita Lee foi passear… E sua morte soa como a de um familiar neste dia 09 de maio, como se fosse uma professora/mãe, que ensinou muita coisa com muito carinho e agora partiu. Não escrevo esse texto como obituário e não vamos passar a limpo sua carreira, fazendo lista de melhores canções ou algo batido do tipo. Demorei pra definir o que seria esse texto, mas acredito que a melhor coisa a fazer é uma declaração de amor em forma de coluna.

Para começo de conversa, Rita é a voz! Ela deu voz pra muita gente. Para as mulheres reagirem, isso até mesmo no período dos Mutantes, em letras que iam de atitude, posicionamento, de empoderamento (antes dessa palavra existir ou ter a projeção que tem), até mesmo falar de amor romântico sem soar piegas.
Para a sociedade brasileira, que por vezes repetiu suas letras libertadoras, para ir contra o moralismo cretino e a censura, isso desde os anos 60 e a ditadura no Brasil. Bom lembrar que ela foi a mulher mais censurada do país nesse período e até teve uns resquícios dela até os dias atuais. Inclusive, um bom exemplo foi o que ela sofreu no palco do último show de sua carreira, na grande Aracaju, Sergipe. Ela bateu de frente com a polícia após eles revistarem seus fãs atrás de maconha, acompanhando a truculência, ela entoou em plena fúria um verdadeiro discurso:
O que vocês estão procurando queridos policiais? Baseado? vocês vão achar! Alegria? Vocês vão achar! Lazer, felicidade… só isso! Olha, se a polícia bater, eu vou falar para o Brasil inteiro, denuncio e processo. Isso é força brutal. Vocês não têm o direito de usar a força na ‘meninada’ que não está fazendo nada. Cadê o responsável? Eu quero falar, tenho o direito. Esse show é meu, não é de vocês. Esse show é minha despedida do palco e vocês continuam tendo que guardar as pessoas, não agredir. Seus cachorros. Cafajestes. Vocês estão fazendo de propósito. Eu sou do tempo da ditadura. Vocês pensam que eu tenho medo? Vem aqui. Eu sou mulher. Tenho três filhos, uma neta, 64 anos. O que vocês vão fazer? É isso que vocês querem: chamar atenção. […] Cadê por escrito que vocês têm que fazer isso? […] O que é isso? Não, eu não vou esperar. Esse show é meu. As pessoas estão me esperando cantar. Não é a gracinha de vocês, seus filhos da p***Vêm me prender. Agora vêm aqui!
Rita Lee em 2012
Além disso tudo, ela sofreu com críticas até pelo ato mais rock ‘and’ roll que existe, que é se manter casada com o amor de sua vida. No caso dela, o guitarrista e compositor Roberto de Carvalho, um outro herói do rock nacional e fonte de inspiração de composições de muitas músicas da musa como Desculpe o Auê. Ela sempre foi “prafrentex” e foi capaz de mudar as percepções e aumentar o valor do básico para falar de temas complexos que parecem simples.

Ela era pra se chamar Bárbara por conta de Santa Bárbara, Mas virou Rita, os Mutantes inicialmente tinham um nome em inglês, mas ao serem apadrinhados por Ronnie Von se transformaram naquela novidade tão inusitada e fora da curva que virou Mutante. Cativaram Caetano Veloso e Gilberto Gil que abrasileiraram os jovens os tornando a banda base para o Tropicalismo. Muita coisa rolou nesses anos 60, mas o fim do casamento de Rita Lee Jones com Arnaldo Baptista, que nas palavras dela na verdade se tratou de um deboche, e o diferente direcionamento preterido por Sergio Dias e os demais da banda que preferiram chutar a moça fora fez ela ficar ainda maior, mostrando o quanto ela tinha sua própria voz e força.
Sem banda e sem seus mentores que estavam exilados em Londres, Rita partiu para o país europeu para espairecer e encontrar um refúgio dos problemas. Após uma temporada nas terras da rainha ela teve a sacada de buscar sua forma de “botar as asas pra fora”. Com um colar de LSD passando despercebida na alfandega, Rita Lee Jones estava de volta ao Brasil “representando a loucura” com seu cabelo agora num tom ruivo flamejante, junto com um par de botas prateado fenomenal, com a ambição de fazer sucesso e provar sua independência, de forma inédita no país.
Fato consumado graças ao álbum Fruto Proibido lançado no início dos anos 70 na aliança da cantora com a Tutti Frutti. Sendo a frontwoman do grupo, que trouxe composições que perduraram os anos por conta de sua ousadia e trazerem uma mulher que mostrou a aqueles que pediam “culhão” que pra cantar o tal de Roque Enrow os ovários e útero também davam conta do recado.
Nesse período que gerou 4 discos, ela se demonstrou a inimiga do “não pode”, essa é a fase dela que considero mais apaixonante por ser tão confrontante. Como ela deixa claro na faixa Pirataria e nas demais músicas dessa época, foi com sua própria banda que ela pôde cuspir na cara de críticos Sem Cerimônia, que “pra fazer silêncio ela berra e pra fazer barulho ela mesma faz” – após a suspensão dos jardins da babilônia (sic). Ela também mostrou que poderia “tocar sua guitarra enquanto ninguém a tocava”; que pode ser corista num grupo de rock “que tem pra valer um ponto de vista que não se limita de ser ou não ser, preferindo ser os dois”; Que lá vem a Miss Brasil 2000; Com humor, falou da preservação à Mamãe Natureza; e que queria fumar sua erva estando Perto do Fogo. Abordou praticamente tudo nos anos 70 e início de 80, até que encontrou Roberto de Carvalho e resolveu ampliar seu leque além do que havia proposto em Doce Vampiro.
Quando firmou seu relacionamento com Roberto de Carvalho, num modelo “dupla dinâmica”, trouxe um jeito moderno de abordar o amor, onde ela falou abertamente sobre “o prazer de ter prazer comigo”, “ficar de quatro no ato”. Em seguida sobre “bailar como se baila na tribo”, “no esconderijo”, um texto safado que conduziu sua adaptação camaleônica ao som da década de 80 e passou a ser a principal artista a trazer a forma mais completa da tradução do povo brasileiro. O que fez ela ganhar programas e shows televisionados mostrando a artista cantando com João Gilbert, Elis Regina e Maria Bethânia, o que mostrava o tão querida ela era em todas direções culturais do Brasil com seu novo repertório tão plural.
Sua fase superpop foi tão formidável que gerou sucessivos hits. Ao passar dos anos, sendo mais preciso, no início da década de 90, surgiu a possibilidade de render homenagens, como no álbum Bossa n’ Roll onde o casal fez os Rolling Stones “não sentirem satisfação” em Bossa Nova. E ela ainda traduziu para o português os Beatles de uma forma tão sublime quanto as originais de Lennon e McCartney, como em Minha Vida, sua versão para In My Life. Mas, também de forma bem humorada, trouxe O Bode e a Cabra, sua versão meio forró de I Wanna Hold Your Hand, que deu uma irritada na Yoko Ono que demorou anos para liberar a versão.
Ela é a mulher que mais vendeu discos no país e tem registradas, oficialmente, 315 músicas e 638 gravações. E fez isso como interprete ou apenas como compositora, é dela a letra de grandes sucessos como Colombina de Ed Motta e a parceria Pagu com Zélia Duncan. Essa última provavelmente um dos maiores hinos do movimento feminista brasileiro. Falando nisso, ela tomou muitas frentes intencionalmente, passou a representar não só a roqueira brasileira transgressora que quebrou padrões como “pra ser roqueiro tem que ter cara de bandido“, ela contestou até ter o rótulo de “rainha do rock”, ela era simplesmente anti-rotulação. Era a afronta ao deboche, cor de rosa choque, fértil e potente com seus discursos irreverentes.
O segredo da vida qual é? A gente nasce, a gente cresce, agente estuda, trabalha, arranja um bom emprego, ganha grana, vai ao supermercado, tosta toda grana em comida, chega em casa, faz comida, come e a comida e por fim tudo vira bosta!
Rita Lee em show anunciando que iria tocar o single Tudo Vira Bosta, 2012
Ela foi compositora, debatedora no programa saia justa, atriz, pintora, escritora, mãe e avó. Ela também era a representante das grandes batalhadoras de direitos e valorização do feminino, mesmo confessando não fazer parte do movimento feminista, ela apoia a causa. Devido a sua crença na liberdade e por seu discurso que possibilitava a discussão aberta de sexo e sexualidade, fez isso em Luz del fuego, Amor & Sexo, entre outras. Ainda utilizou bastante do humor como em Deus Me Proteja, para se manter atual e atemporal. Além de tudo isso, foi “guerrilheira/forasteira” na guerra particular contra o câncer, tendo vencido muitas batalhas até o fim.
Em sua primeira autobiografia, quebrou diversos recordes como os 98 mil exemplares, liderando entre os brasileiros do ranking de livros não ficcionais, isso em 2017. Tem uma nova autobiografia dela na praça e que ganhou um significado muito maior agora, certamente novos recordes serão quebrados. Seu livro pra crianças também foi muito celebrado. Ela em 2017, numa entrevista para Pedro Bial, disse que tinha músicas suficientes para um novo álbum. Seu espólio é gigante e certamente será bem conduzido por sua família, infelizmente sem ela para nos divertir com os anúncios que poderão ocorrer, mas que certamente, através das palavras, sejam redigidas ou cantadas, vão fazer muitas pessoas se sentirem da forma como ela garantiu no fim de seu primeiro livro biográfico.
A sorte de ter sido eu, de ter sido quem eu sou, de estar onde eu estou, não é nada se comparada ao meu maior gol. Sim, acho que fiz um monte de gente feliz’.
Rita Lee no livro Rita Lee: Uma Biografia, 2016
Ôrra Meu! Viva Rita Lee!
Viva Rita Lee, Rest In Power