Review: Moonage Daydream

Um “rockumentário” que destrincha o ser humano Bowie de uma forma bem conduzida e de bom ritmo para contemplar toda a sua grandiosidade artística que vai além da música. Ao ver o filme, usar o termo “ser humano” para classificar a lenda vai fazer sentido, já que ele se abre como um bom livro de memórias em materiais de arquivo, em especial nas entrevistas que buscam expor seu intimo.

Roani Rock

Direção: Brett Morgen
Data de Lançamento: 15/09/2022
Aonde assistir?: Espaço Itaú de Cinema/ Estação NET Rio (Ultima semana)


O projeto foi iniciado em 2017 pelo diretor Brett Morgen que já tinha em seu histórico o bom documentário Kurt Cobain: Montage of Heck de 2015. Acredito que por esse trabalho primeiro ter dado certo, o responsável direto por fazer a curadoria do gigantesco acervo de Bowie, o David Bowie Estate, foi convencido a conceder ao diretor acesso irrestrito à coleção de mais de 5 milhões de ativos de propriedade do artista, entre desenhos, gravações, filmes e diários raros nunca antes vistos. E é de bom tom de minha parte dizer que o diretor soube usar o que tinha em mãos.

Durante as duas horas e alguns minutos de filme, o espectador é convencido a vivenciar o universo de Bowie, sendo convidado a escutar o artista falar sobre sua vida e dando sua opinião valiosa frente a diversos assuntos, dentre a carreira, o social, amor e religião. A primeira parte do filme nos transporta de imediato para os anos 70, no início da ascensão de Bowie na alcunha do andrógino personagem Ziggy Stardust. É muito legal ver ele explicando que o rock feito em Nova York, a mímica e o teatro japonês kabuki foram cruciais para inspirar o messias do rock Ziggy Stardust, que aterrissou no planeta terra e que sua existência nos faz chegar a conclusão que músicas tão atemporais como All The Young Dudes, Rock ‘and’ Roll Suicide, Life on Mars, Cracked Actor (mostrada na performance antológica no Universal Amphitheatre) ganharam mais prestígio por serem interpretadas por essa personalidade.

Sua conduta é criticada em diversos trechos de entrevistas para Russell Hart, Dick Cavett e outros por conta de sua orientação sexual não ortodoxa e os exageros no brilho, nas roupas e maquiagem que rendiam divertidas respostas. A proporção do seu alcance ao mostrar fãs demonstrando devoção, faz o espectador se sentir inserido naquelas filas com pessoas caracterizadas. Em seguida começam a aparecer cenas de performances tiradas do concerto no Hammersmith Odeon em Londres no dia 3 de julho de 1973, o último da tour do Ziggy Stardust and Spiders From Mars, isso merecidamente durou uns 30 minutos de filme.

 “Zyggy, para mim, era uma coisa muito simplista. Era para ser um astro de rock alienígena. Mas outras pessoas fizeram uma releitura dele” disse Bowie em dado momento para em outro parte completar essa linha com “O artista não existe. O artista é apenas uma invenção na imaginação das pessoas. O Dylan é. O Lennon é. Eu serei. O Jagger é. Eles não existem, nenhum deles. Nenhum de nós existe. Estamos além da imaginação. Somos os falsos profetas originais, somos os deuses“. Dentre alguns depoimentos como esse que visam nos fazer compreender o que o camaleão do rock pretendia, fica a indagação se ele queria realmente confundir a todos na época ou se era alguém vivendo como bem queria, sendo vanguardista e avesso a fama, mas sem poder se desvincular dela.

Uma coisa que me incomodou um pouco é não terem abordado o início da carreira de Bowie até o álbum Hunky Dory e sua fase soul. Ao meu ver poderia ter engrandecido ainda mais a obra trazendo aquela questão da ‘jornada do herói’ encontrando seu primeiro obstáculo, até ter a brilhante ideia da criação do Ziggy. Mas, isso não prejudica o filme que através dos conflitos existenciais abordados, principalmente na parte em que ele menciona sua infância e vida pessoal, dão um peso considerável. A relação traumática do artista com os pais, sobretudo com sua mãe, Margaret Mary Jones, além da grande influência positiva do seu irmão mais velho, Terry Burns, que em contrapartida, nos apresenta o grande pesar de Bowie por não poder ajuda-lo já que este sofreu de esquizofrenia depois de servir às Forças Armadas se tornando uma pessoa distante.

O filme levou quatro anos para ser montado – 18 meses apenas para o projeto da paisagem sonora, animações e paleta de cores. O que justifica conseguir criar uma linha temporal cuidadosamente fluída para a construção do que veio a se tornar o David Bowie ao longo das décadas. O fim da fase Ziggy é o início da abordagem a outros temas além da música, como o lado pintor, ator e filantropo de Bowie. Aparecem diversos quadros feitos por Bowie e surge em vários momentos do filme ele interpretando um jovem com síndrome de down em uma peça, possivelmente da Broadway.

A personalidade do Thin White Duke é comentada durante os anos 80 quando ele estava querendo criar um novo tipo de música e começou sua megalomaníaca tour Glass Spider. Sua estadia na Alemanha Oriental também tem seu destaque falando sobre Brian Eno e a criação dos álbuns que geraram o hit Heroes que é apresentada numa performance mesclando épocas diferentes dos anos 80 e 90, subterfugio usado em outras músicas no decorrer do filme também.

Para mim sempre foi uma busca. Via de regra, acho que a questão é sempre a mesma que ronda quase todo artista: qual a minha relação com o universo? Acho que é uma pergunta essencial que todos nós fazemos. Muitos de nós, provavelmente, nos minutos finais

Duas questões são sempre levantadas da metade para o final do filme, o que inspira Bowie e o por que dele ser tão prestigiado. Para respondê-las o artista fala sobre sua posição de andarilho, como nunca ter comprado uma casa por exemplo, ter buscado residir em lugares inóspitos, seja o deserto de Los Angeles ou a então Berlin ocidental, que o incomodava ou que traziam aquela sensação de ser um comum no meio de uma multidão. Ele via o trabalho dele como algo importante até por reconhecer a grandeza que tinha, e por isso sempre buscava estar em movimento, mas sem estar necessariamente viciado no trabalho, dizendo deixar as coisas fluírem de forma normal.

Não se fala muito dos romances que o cantor teve e muito menos se fala da sua adição a drogas. Na verdade, elas ficam expostas nas letras das músicas e é mostrado um lado de fragilidade do camaleão do rock referente ao assunto de “se entregar ao amor“, com ele sendo cético a se apaixonar até que conhece Iman com quem se casou em 1992 e com quem ficou até sua morte em 2016.

O soundtrack é o que por fim categoriza o bom andamento do filme, contemplando todas as suas fases e mutações no som; até a fase de rock industrial e faixas do Blackstar aparecem. Mas, por mais que alguns pontos de sua vida tenham sido tratados em en passant, certamente Moonage Daydream é uma obra definitiva para de fato se conhecer o David Bowie, seja como artista ou pessoa. Recomendo fortemente a ida ao cinema ou assistir quando sair em algum streaming.

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