Tivemos que tirar um tempo para absorver o que recebemos de informação com o The Beatles: Get Back, de Peter Jackson. Um filme dentro do filme em três episódios, lançado pela Disney+ duas semanas atrás, selecionado a partir de 57 horas de filmagem e 150 horas de áudios gravados em janeiro de 1969. Uma verdadeira overdose dos Beatles em estúdio compondo, discutindo, tretando, se divertindo, em convívio com a família… praticamente um “Show de Truman” (1998) que o diretor Michael Lindsay-Hogg não teve coragem de fazer, mas que Jackson aceitou o desafio. De certo um exercício bem prazeroso para o responsável por ter dado vida ao Senhor dos Anéis (2001) em filme, afinal de contas esse é o documento que faltava para qualquer beatlemaníaco poder dizer que “já viu de tudo dos Beatles” – guardadas as devidas proporções.
Foram inúmeros filmes e documentários feitos no período de 1970 quando saiu o filme Let It Be até o ano de 2021 quando saiu o Get Back. Mas Let It Be sempre foi um filme ora carregado e ora trazendo aquela sensação de não ter sido o suficiente, provavelmente por sua duração ser basicamente de 1 hora e meia. O que faz a chegada do Get Back um dos melhores gracejos para os fãs que sempre quiseram ter acesso a mais material da gravação do derradeiro álbum dos Bealtes.
Até este ponto, o documentário mais importante da história do fab four é o Anthology, que fora lançado pelos idos dos anos 90. Devido ao bastante material de arquivo, músicas e reencontro de George, Paul e Ringo para contar a história de cabo a rabo da banda, dos quatro rapazes de Liverpool esmiuçando tudo com John Lennon in memorian fez todo mundo pensar que o Anthology não tinha deixado pontas soltas. Entretanto, após o Anthology, importantes trabalhos nos foram apresentados ao longo dos anos o que enriqueceu a história e fez com que mais uma vez, chegado o ano de 2021 ficasse o questionamento sobre o que ainda faltava para os fãs vivenciarem.
Em termos de registros em documentários, se destacam o doc de 2006 que contava a história de John Lennon nos Estados Unidos, os bastidores da sua obra prima Imagine (1988), em 2011 tivemos o Living Material World de George Harrison que discorre sua vida até o dia de sua morte, Eight Days A Week (2016) que abordava de forma bem profunda as turnês (principalmente a americana) que conta com depoimento de músicos, amigos e celebres fãs falando sobre o impacto dos Beatles em suas vidas contextualizando historicamente, seja na moda, estilo de vida, corte de cabelo, etc. Mas nada disso chegou forte, porque estes citados não traziam grandes novidades sobre os Beatles, já o Get Back…
Agora, estamos todos revivendo um instantâneo daqueles tempos – e em incontáveis casos, sendo apresentados a eles. De antemão deixo claro que não se trata de um conteúdo para entretenimento. Como li muito por ai, pessoas alheias ao que vão presenciar podem terminar achando “chato”. Em suma, trata-se de um grande registro que mostra músicos cheios de pressão, com relacionamentos abalados, tentando compor um disco em uma agenda apertada de três semanas em janeiro de 1969 para assim poderem seguir suas vidas. Mas por mais que isso pareça ser uma definição simples, é muito rica e complexa em função de não serem quaisquer pessoas tendo suas vidas expostas, estamos falando dos Beatles e por conta disso, nós espectadores que terminamos ficando expostos a uma grande oportunidade.

Embora seja completamente compreensível que fãs mais casuais dos Beatles possam achar o documentário complicado, para beatlemaníacos mais dedicados (como o eu), é uma visão fascinante de como esse mais lendário dos grupos de rock operava. Dá para dizer que os episódios são divididos em três etapas: a 1ª fica na tensão, o 2ª em uma espécie de transição para “um novo começo” devido a chegada de Billy Preston para o piano elétrico principalmente, o que fez com que as animosidades dessem uma sessada. E por fim, na 3ª ocorre o que chamo de satisfação – sem piadinha frente aos Stones -, com o show no rooftop dos estúdios da Apple sendo o ápice.
Acredito que Get Back é exatamente o que o Let It Be de 1970 deveria ter sido. Assistindo os três episódios se sente a pressão e isso mesmo na contextualização histórica da banda feita no primeiro para chegar no ponto em que vão parar no galpão do Twickenham Studios, o coração chega a acelerar. O começo é bem sutil e bem humorado, mas ao passar dessa primeira e breve parte, vem o choque de realidade onde nos deparamos com uma boa possibilidade de analisar o comportamento humano dos que aparecem no estúdio e de entender o que estava rolando com os integrantes daquela que naquela época ainda era a maior banda do planeta.
O primeiro a se mostrar perdido e frustrado de cara é o diretor do filme Let It Be. Hogg queria um show gigantesco em um anfiteatro na cidade de Trípoli, na Líbia. Tal desejo foi cortado por Ringo que, por estar prestes a gravar um filme, não queria sair da Inglaterra. George Harrison que já estava em um momento totalmente desgastado diz: “Só quero terminar o show e poder ir para casa”. O único que parecia interessado em contribuir foi Paul que já não queria e não tinha mais o controle para coordenar tudo o que brecou o diretor que incomodado por muitas vezes era invasivo e palpiteiro.
Em contra partida, a presença de Glyn Johns, Mal Evans e depois a agradável chegada de Billy Preston, mostra que os Beatles tinham mais do que bons aliados, eles tinham bons amigos, que davam conselhos que eram solicitados pelos quatro. Foi uma grande surpresa ver Mal tão influente e sendo tão querido, fazendo anotações além de bater o martelo na bigorna em Maxwell’s Silver Hammer. Outra grande figura do longa foi Glyn Jones, sendo um profissional fora de série para o seguimento das gravações com o apoio de George Martin que eu não sabia que tinha estado presente em todo o processo da gravação do filme Let It Be.
Para quem é músico ou já foi, é muito divertido se reconhecer naqueles momentos em janeiro de 1969 na hora da composição já nos estúdios da Apple que trouxeram uma aura mais leve para sequência dos trabalhos com os Beatles perdidos, buscando palavras pra encaixar nas melodias. O filme nos permite ver Paul tirando da cartola, Get Back, I’ve Got A Feeling, Let It Be, She Coming to Bathroom Window, The Long And Windding Road e boa parte de suas composições que marcam presença no álbum Abbey Road – gravado depois do Let It Be mas lançado antes -, nos levando a constatação de que Paul era realmente uma máquina de composição, que fazia de forma bem natural, enquanto John trazia consigo Don’t Let Me Down e a forma primal de Across The Unverse com dificuldade para trazer algo mais concreto.
Mesmo com toda essa parte boa de ver eles aprendendo um a música do outro, dados momentos é agoniante ver a falta de sintonia, principalmente quando George Harrison busca um apoio de John e Paul e estes ou tiram sarro ou se mostram desinteressados por suas músicas. Bom frisar que não ocorre o tempo todo esse “desprezo” e até acontece no processo da definição do repertório com as músicas já redondinhas uma ajuda na confecção das letras como em I Me Mine para Harrison e Don’t Let Me Down para John. Mas em All Things Must Pass eles até largam de mão ou o próprio guitarrista prefere guardá-la para aquele álbum triplo que conhecemos muito bem. Todavia, entrar nessa intimidade que quase constrange a audiência é muito impactante, mas já que nos foi permitido ver todo esse processo é importante se deixar levar pela série.
Como diria Peter Jackson, “Não há vilões. Não há heróis. É só uma história humana.”. Tudo que é presenciado pelas telas faz parte da experiência de imersão proposta pelo diretor. A saída de George Harrison da banda e um longo atraso que sugeria que Lennon fosse seguir pelo mesmo caminho. Traz um misto de desespero e tristeza, faz o Paul em um dos momentos mais épicos em estado desolado murmurar: “E, então, restaram dois.” Isso seguido por um longo take que enche a tela com um close no baixista, que se esforça para evitar as lágrimas. Pós cena tão marcante, uma conversa gravada por áudio no jantar entre John e Paul, discutindo a saída de George nos leva a entender o quanto os egos e a morte de Brian Epstein afetaram em tudo na banda que não sabia se gerir. Como disse posteriormente John Lennon em entrevista, “Os Beatles acabaram quando Brian morreu. Ali começou a morte lenta.“

É bastante empolgante também ter a percepção que eles não estavam avulsos ao que ocorria do lado de fora do estúdio. Com muita leitura de jornal, certamente buscando inspirações para compor, John, Paul, George e Ringo se deparam com as falas do ex-ministro da Saúde Enoch Powell, do Partido Conservador no parlamento britânico, que passou a promover o racismo e a xenofobia depois de uma série de discursos contra a onda de imigração que, segundo ele, ameaçava a Grã-Bretanha. A música Get Back é em “homenagem” a ele, trazendo com sarcasmo o refrão “volte para onde você pertence”.
Na semana em que George Harrison voltou pra banda e eles saíram do frio, grande e escuro estúdio de Twickenham e foram para o iluminado estúdio de Abbey Road, culminou da imprensa explorar muito a possibilidade de eles estarem se separando. Algumas matérias que chegaram para eles em estúdio deixaram a todos indignados, em particular uma escrita pelo jornalista Michael Housego que fez uma coluna opinativa em que questionava se a amizade dos quatro integrantes dos Beatles era verdadeira. Isso leva Lennon a dizer: “Só há um cara que eu queria socar: (Michael) Housego“. Falando nisso, travam sarro lendo as matérias, incluindo uma que alegava que Harrison poderia ser preso por ter socado um fotógrafo que tirou foto dele e de Ringo saindo de uma boate.
O documentário John & Yoko: Above Us Only Sky (2018) presente na Netflix que tem uma função parecida com a do Get Back, mostra Lennon compondo o álbum Imagine com comentários dos músicos convidados e jornalistas aliviando um pouco o lado de Yoko, trazendo a figura da esposa amorosa, algo que nunca foi questionado em grande escala. Agora, Get Back mostra que a esposa oriental de Lennon que soltava uns berros ao microfone sofreu uma injustiça ao longo dos anos por parte de uma parcela de fãs e mídia. Ficou claro que ela ficava na dela, no canto do estúdio, sem questionar ou reclamar e as vezes até era zoada, até por John.
É certo afirmar que as críticas mediante a ela não são tão sem fundamento, já que o relacionamento dos dois mudou John, que se tornou mais político e engajado, o levando a ter outros tipos de referências que talvez com os Beatles não teria tido liberdade total para explorar devido a mecânica da banda, o que nos leva a outro ponto importante que a série documental traz. Mas Yoko não teve influência direta no término da banda, na verdade em muitos momentos ela incentiva a continuidade de John no grupo.
Em dado momento do terceiro episódio, George Harrison menciona a vontade de lançar um álbum solo para John Lennon, mas sem que isso influenciasse no fim dos Beatles, dizendo que na verdade cada um poderia lançar suas coisas e que isso faria com que a banda pudesse ganhar uma nova vida nos próximos trabalhos. John concorda, mas nada disso é comentado posteriormente e principalmente na presença de McCartney. Ai entra o nome de Alan Klein (empresário dos Rolling Stones) na jogada. Ele é citado por Lennon, mas há outro nome que não aparece no documentário que é o do pai da Linda Eastman McCartney, o Lee Eastman. E isso sim que deu o basta na relação de John, Paul, George e Ringo como Beatles e até como amigos próximos.
Um ponto positivo para o Get Back foi ter entrado em uma plataforma como a Disney+, bastante popular entre os jovens e crianças, o que de certo impulsiona o interesse em buscar mais sobre os Beatles e os motivos do fim. O que nos é a apresentado de verdade é uma série de desentendimentos e a falta de um organizador que pudesse gerir a carreira deles em conjunto, o que os faz desinteressados e abatidos por uma parte do documentário e quando se concentram na música – principalmente com a vinda Billy Preston, nosso super herói – sorrisos, brincadeiras e o espírito Beatle que conhecemos dos filmes e registros das turnês.
A série documental é esclarecedora e nos permite ver esses arquivos citados, vale muito a pena mesmo para quem não é fã do fab 4 entender como é o processo criativo de uma banda, no caso uma renomada, ver as brincadeiras, ver a banda escutando o que gravou, a filha de Linda se divertindo, John e Yoko dançando e principalmente, ver o nosso outro herói Mal Evans segurando os policiais que surgem para acabar com o show no roof top da Apple porque estavam causando “perturbação da paz”.
O filme original, de 16 milímetros, foi colorizado e perdeu a granulação típica. Isso permitiu que a maior parte dos negativos originais fosse aproveitada. A revolução, contudo, foi sobre a restauração do som. Por meio da inteligência artificial, a equipe de Peter Jackson treinou a máquina a diferenciar instrumentos das vozes. Com essa solução, foi possível recuperar falas inaudíveis que os Beatles fizeram questão de torná-las assim. Em vários momentos, enquanto conversavam, os músicos tocavam seus instrumentos, impedindo a boa captação das vozes. As conversas que eles imaginavam que seriam privadas em 1969 se tornaram totalmente públicas em 2021. Aproveitem a série se tiverem oportunidade!
Beatles é a maior e melhor banda de todos os tempos!!!
Não existeria música se não fosse os 4 garotos de Liverpool.